Você acredita que alguém possa ser insensível à tristeza?

CalvinSad3

Clotilde abriu os olhos, virou-se e desligou o despertador.
Faltavam 8 minutos para as 7h.
Ela tinha essa capacidade: acordar uns minutos antes da hora e desligar o alarme antes dele tocar.
Assim deixava Emilio dormindo e fazia seu ritual matinal sem pressa.

Clotilde vestiu o penhoar e desceu para a copa.
Saboreou o café da manhã tranquila, passeando pelas manchetes do jornal.
Ao terminar, recolocou a mesa e foi chamar Emilio.
Subindo as escadas para o quarto, sentiu um arrepio de frio.

Entrou nos aposentos e Emilio parecia dormir profundamente.
Tocou no marido para acordá-lo e levou um choque.
Ele estava gelado.
Gelado e imóvel.
Sussurrou seu nome num fiapo de ar e tonteou.
Telefonou para seu filho mais velho, Francisco.
Não conseguia articular a frase.
Seu mundo estava desmoronando.
Balbuciou algo ao filho e deixou-se escorregar pela cama até o chão.

Francisco escovava os dentes quando viu piscar MÃE na tela do celular.
Atendeu meio apreensivo.
Ela mal conseguia falar, gaguejando e soluçando.
Ele entendeu “Papai…” e mais nada.
Não compreendeu o resto mas entendeu a mensagem.
A sensação de pânico invadiu seu cérebro.
Ligou para Mario, seu irmão mais novo e avisou: “É papai…Acho que ele se foi…”
Desligou o celular atordoado.
Não sabia o que fazer.
Foi sua mulher quem avisou sua irmã.
E também foi ela quem o arrastou pelo braço e o levou à casa de Clotilde.
Ali chegando, Francisco não teve coragem de ir ver o pai.
Só conseguiu abrir a porta aos parentes que começaram a surgir do nada.
A realidade parecia engoli-lo.
Então Francisco resolveu que precisava reagir.
Decidiu que iria impedir seu tio de levar seu pai para o cemitério de São Roque.
Era no Santíssimo Sacramento, no Sumaré, que Emilio e Clotilde queriam ser enterrados.
Francisco precisava reunir coragem para enfrentar o tio.
Mas a visão de sua mãe aos prantos e desorientada, só aumentava sua confusão.

Mario ajeitava o nó da gravata quando viu a ligação de Francisco.
Àquela hora da manhã?
Atendeu preocupado e escutou: “É papai….Acho que ele se foi…”
Seu coração disparou.
Em um minuto Mario saía da garagem.
Chegando ao sobrado de sua mãe, foi direto até ela.
Clotilde estava arrasada pela dor.
Sua irmã já a amparava, embora chorando com ela.
Deu-lhe um beijo e subiu para o quarto para ver o pai.
Com o rosto tranquilo, Emilio parecia dormir.
Mario desceu as escadas e percebeu que todos estavam inertes, sussurrando assustados.
Nada havia sido providenciado.
Esforçou-se para organizar as ideias do que fazer.
Ligar para o médico, pedir o atestado de óbito.
Ligar para o serviço funerário, pedir a remoção.
Ligar pra o Santíssimo Sacramento e pedir a abertura da sepultura.
Cada pensamento do que tinha a realizar lhe doía fisicamente.
Cada movimento, cada conexão de causa e consequência, cada visão do futuro imediato lhe causava dor.
Então olhou para sua mãe, tão frágil quanto uma pietá.
Aquilo era mais forte do que seu suplício.
Sentiu a urgência de tirá-la daquele pesadelo.

Deu-lhe um abraço e sussurrou:”Fique tranquila, sei o que fazer.”
Consultou sua irmã que lhe indicou o próprio marido como colaborador.
Achou melhor não interferir na cruzada do irmão contra o tio.
Pediu ajuda ao cunhado e delegou tarefas a alguns parentes.
Foram vários telefonemas mas conseguiu o que precisava.
O médico viria em uma hora.
A funerária chegaria às 16:00h.
O cemitério agendou o enterro para as 10h da manhã do dia seguinte.
Mario respirou aliviado.
Tinha cumprido sua missão.

O que há para se aprender de uma história tão triste?

Com Clotilde:
Ela pediu socorro e entregou-se à dor porque percebeu que não tinha a menor chance de enfrentá-la.
Deixou-se cuidar e foi o melhor que poderia fazer.

Portanto, não há problemas em se entregar à tristeza.
Desde que você peça ajuda a pessoas confiáveis.
E que se responsabilizem pelo que quer que tenha de ser feito.
É também importante aceitar essa ajuda sem restrições para não desautorizar quem se responsabilizou.

Com Francisco:
Ele bem que tentou tomar providências.
Mas não teve equilíbrio emocional suficiente.
O medo misturou-se à tristeza.
Seus fantasmas tomaram o lugar da realidade.
Ele viu no tio, uma ameaça que não existia.
Francisco havia perdido o bom senso por causa da dor.

Portanto nem sempre quem toma a iniciativa é a pessoa mais adequada para solucionar uma crise.
Da mesma forma, nem sempre quem tem a maior autoridade é necessariamente o mais competente.
É preciso ter esse discernimento em uma situação crítica.

Com Mario:
Ele era o mais consciente.
Percebeu a fragilidade da família inteira e assumiu as providências.
Foi objetivo e organizado.
Pediu apoio para não se sobrecarregar.
Teve o bom senso de delegar o que era possível e fazer o indispensável.
A estratégia toda mostrou-se acertada.

Portanto, é mais inteligente ceder o comando para quem sabidamente tem capacidade.
A solução da crise deve ter prioridade diante das vaidades pessoais.

Com a situação toda:
Ninguém questionou a autoridade de Mario, mesmo sendo o mais novo da casa.
Não houve resistências e nem disputas.
Todos foram solidários e empáticos.

Portanto nota-se que em situação de tristeza, as pessoas tendem a colaborar.
Até mesmo a não atuação de Francisco foi colaborativa.
Ele reconheceu suas limitações e não interferiu na atuação de Mario.
É muito importante dar suporte para a pessoa no comando.
É importante inclusive, protegê-la ou confirmar sua autoridade se houver resistências.

Por fim, creio que a pergunta inicial está respondida.
Saber lidar com uma emoção não significa de modo algum, ser insensível a ela.
Significa apenas conseguir colocá-la em segundo plano, quando o uso da razão é mais urgente.
Essa capacidade é importante em momentos de crise e deve ser reconhecida, não criticada.
E é bom você ter em seu horizonte, alguém assim a quem apelar.
Você nunca sabe quando vai precisar.

Este post é baseado em um caso real.
Se você tiver algo a comentar, fique à vontade.
Será um prazer saber de suas impressões.