Você já viu alguém oferecer ajuda para quem se mostra completamente autossuficiente?

quote - gravity

Sóter era advogado e havia terminado recentemente o curso de Mediação.
Para não perder contato com os colegas de turma, propôs a eles reuniões mensais para troca de experiências.
Todos aderiram entusiasticamente.
E de quebra, o elegeram líder da nova confraria.
Sóter ficou orgulhoso pelo reconhecimento.
Passou então a marcar os encontros em cafés e restaurantes, sem grandes compromissos de presença mínima ou reserva antecipada.
Era só chegar, juntar-se ao grupo e pagar a conta individual na hora de ir embora.

Organizar esses eventos parecia uma tarefa simples.
Não era bem assim.
Exigia criatividade para pensar no que propor e também tempo para pesquisar local apropriado.
Demandava logística para convocar a turma toda e paciência para estimular os interessados que nem sempre se lembravam de aceitar o convite.
E finalmente, pedia um perfil de liderança e legitimidade que levasse as pessoas do grupo a aderir aos encontros.
Sóter atendia tranquilamente a esses requisitos.
Suas sugestões eram sempre elogiadas e ele mostrava dar conta de tudo com facilidade e competência.

Com o passar do tempo entretanto, começou a se ressentir de que ninguém o auxiliava.
E não raro, sentia que seu esforço não era valorizado quando parte da turma confirmava presença e não comparecia.
Até que um dia recebeu um email de um de seus colegas da Mediação.
Diomedes, o cara mais inseguro do grupo, acenava com uma grande ideia para o próximo encontro.

Que consequências esse email poderia gerar?

1.  Só de reconhecer o remetente, Sóter desanimou.
A primeira coisa que pensou foi que só poderia ser uma sugestão sem pé e nem cabeça.
Ficou tentado a ignorar a mensagem.
Acabou abrindo o tal email com um certo enfado.
Leu o texto com desinteresse e teve a certeza de que aquela proposta estava cheia de furos óbvios.
Perguntou-se como é que o autor não enxergava aquilo.
Descreveu as falhas da forma mais polida que pôde e mandou a resposta de volta, praticamente encerrando o assunto.
Ao lê-la, Diomedes concluiu que era mesmo bobagem dar palpites a alguém tão competente quanto Sóter.
Reconheceu que nunca conseguiria pensar em tudo e tão profundamente quanto o advogado.
E saiu espalhando pelo grupo como Sóter era ótimo na tarefa de reunir a todos.
Como era difícil igualar-se a ele em criatividade e bom gosto.
E quão competente ele era em pensar em tudo.
Era óbvio que não precisava de ajuda.
Nunca mais alguém se animou a dar sugestões para as reuniões da turma.

Ou

2. Sóter viu a mensagem de Diomedes e não ficou muito animado.
Pensou que talvez fosse perda de tempo ler aquilo.
Foi quando se lembrou dos objetivos de suas sessões de coach e então, resolveu arriscar.
Para sua surpresa, a ideia de Diomedes era boa e até divertida.
Tinha umas falhas que a inviabilizavam, mas ainda assim era interessante.
Respondeu ao colega questionando as inconsistências.
Diomedes de fato, não tinha resposta para elas.
Sóter então agradeceu e disse-lhe que apresentasse outras ideias mais viáveis, quando as tivesse.
Meio desapontado com o desfecho de sua iniciativa, Diomedes ficou de pensar a respeito.
Sentiu-se envergonhado em dizer à turma que sua ideia tinha sido descartada.
E o assunto morreu ali.
Sóter seguiu sozinho na liderança do grupo.

Ou

3. Sóter viu a mensagem na caixa postal e ficou curioso.
Independentemente do remetente, pensou, aquilo era no mínimo uma novidade.
Abriu a mensagem e viu que a ideia era original e realmente muito boa.
Percebeu algumas inconsistências mas imaginou que não eram suficientes para descartá-la.
Consultou Diomedes sobre mostrar a sugestão para o grupo.
O colega concordou e a proposta foi enviada a todos por rede social.
O debate que resultou desse movimento foi surpreendente e muito positivo.
Vários membros indicaram soluções para os problemas encontrados e assim, conseguiram viabilizar a ideia.
O evento resultante foi um sucesso.
A partir desse dia, o grupo passou a ser muito mais ativo na definição dos encontros seguintes.
E Sóter passou a cumprir com mais leveza a função de liderança de sua turma.

Até mesmo Figaro, o Barbeiro de Sevilha, a um certo ponto reclamava de ter que dar conta de tudo sozinho.

O ser humano, em geral, é comodista por natureza.
Começar algum movimento ou responsabilizar-se por alguma coisa são iniciativas que poucas pessoas têm.
E quando alguém se mete a resolver os problemas de um determinado grupo, as pessoas em volta naturalmente se acomodam.
E tendem a deixar o líder se virar sozinho.
Isso não é exatamente um defeito grave da humanidade.
Afinal, se todos tivessem vocação para liderar, quem seriam os subordinados?

Por outro lado, é comum que quem assume o comando, se queixe de isolamento.
O primeiro desfecho desta narrativa ilustra isso muito bem.
E também mostra a parcela de responsabilidade de quem está nessa situação.

Isso não significa que a pessoa chegue a esse ponto intencionalmente.
Há várias razões para resistirmos a pedir ajuda ou mesmo, recusarmos colaboração alheia.
Vaidade pessoal, insegurança, personalidade centralizadora, controladora, preconceito, orgulho, etc.
Nenhuma delas é fácil de ser superada.

Nem por isso precisamos nos conformar.
Podemos tentar uma atitude diferente daquela que estamos habituados.
Podemos correr o risco.

É exatamente o que Sóter fez no segundo desfecho.
Ele provavelmente já trabalhava em mudança de atitude com seu coach.
Lembrou disso e resolveu arriscar.
O resultado superou suas expectativas.
E ele só não se saiu melhor por falta de prática.
Por outro lado obteve êxito suficiente para tentar de novo em uma próxima chance.

Já no terceiro desfecho, vemos um Sóter já bem mais treinado.
Ele não só abriu espaço para colaborações como também as incentivou.
E chegou a um resultado ótimo que por sua vez, certamente reforçou sua atitude colaborativa, criando um círculo virtuoso.
Este seria o nosso comportamento ideal.

Claro que ninguém sai de uma postura defensiva direto para uma perfeita atitude construtiva em um passe de mágica.
O que podemos fazer é começar devagar.
Começar por nos conscientizarmos de quanto nos aproximamos do primeiro Sóter.
Ou mesmo do segundo.
Para então corrermos o risco de mudar e não desanimarmos caso não tenhamos sucesso de cara.
Provavelmente as perdas de uma tentativa frustrada serão inferiores às de não tentar nada.
E sempre teremos uma próxima chance para fazermos melhor.

No próximo post, falarei mais sobre este assunto.

Agradeço o interesse e tempo dispensados aos meus textos.
Crítica e sugestões são sempre bem-vindas